O 25 de Abril e a História
(Por Prof. António José Saraiva)
Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. Na perspectiva de então havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime.
Quanto à descolonização havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: - o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina - a exposta no livro «Portugal e o Futuro» do General Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram, ou um acordo entre as duas partes ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder.
Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas:
1- Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar;
2- Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tropas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu.
Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários».
E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do Exército, para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige, em grau elevadíssimo, o moral da tropa. Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos e, em qualquer caso, destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que, nas circunstâncias do momento, eram puramente criminosas. Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve.
O outro problema era o da liquidação do regime deposto. Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães que vinha derrubar um governo que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial; impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.
Quanto aos escândalos da corrupção de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial.
Em qualquer caso, já não é possível hoje fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros piores os vieram desculpar.
Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido, e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril. Havia, também, um malefício imputado ao antigo regime, que era o dos crimes de guerra cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados. Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regíme, como não se fez a descolonização.
Uns homens substituíram outros, quando outros homens não substituíram os mesmos; a um regime monopartidário substituiu-se um regíme pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista». Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral.
A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar.
O actual estado de coisas em Portugal nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior, mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois, como num exército em debandada: - vieram as passagens administrativas, sob a capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquos a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio declarado nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos; a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio honesto de viver.
Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, murcharam sobre um monte de esterco.
Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobria uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa História uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só, todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa História, e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de Nação.
Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação independente.
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5 comentários:
"Em qualquer caso, já não é possível hoje fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros piores os vieram desculpar."
"A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar."
Ora bem!!!
O texto é todo ele verdadeiro e pungente, mas só estes dois parágrafos poderiam resumir a nossa situação desde o 25 de Merda. Até quando, até quando?
(*)
Kakauzinha,
Eu estive quase 4 anos na tropa, como oficial miliciano, nos anos anteriores à abrilada. Sei bem do ambiente que existia no seio dos oficiais do quadro permanente relativamente aos oficiais milicianos. Sei bem dos motivos que enformaram a ideia da abrilada!
Por isso te digo que ali não houve nada de idealismo, apenas e tão só de promoção e de dinheiro. De resto, sabiam tanto de política como eu sei de chinês.
E quem se aproveitou de imediato foi o PCP - o único partido organizado na altura. O resto... uma cambada de pulhas e oportunistas que viraram políticos progressistas de um dia para o outro! E cheios de história e de saber!
Ainda um dia hei-de escrever um livro das minhas memórias, desde o livro do Spínola - Portugal e o Futuro - até ao estado do regime na altura que, de tão podre, não fosse a abrilada e teria durado não mais do que 2 ou 3 anos, não chegando a ser necessário aquele arremedo de revolução. E os militares sabiam perfeitamente disso. Mas... nesse caso, aquele grupo de militares não teria a certeza de conseguir o que queria de um novo regime civil. Daí a urgência de ter recorrido à abrilada!
Vê só como eles mudaram completamente o seu estatuto! Vê só como são GRANDES hoje... e GANHAM BEM!...
Kakauzinha, nem de propósito: - vê aqui neste "post" de que estirpe era esta gente e a que nível se tratavam:
http://maquiavelencias.blogspot.com/2010/11/resquicios-da-revolucao-de-abril.html
Por aqui por este pequenino apontamento, já se pode avaliar o resto!
E corroborando aquilo que eu disse mais acima, através desta entrevista que o mentor da Abrilada - Otelo Saraiva de Carvalho - deu ao director do DN, João Marcelino, na rubrica "Gente que Conta", entende-se muito melhor que espécie de idealismo e de conhecimentos políticos tinha esta gente do MFA:
(...)
-Alguma vez nestes anos, e face à qualidade da nossa vida colectiva actual, se arrependeu de ter ajudado Portugal a sair da ditadura provinciana de Salazar e Caetano?
«Não, de forma alguma! Consi-dero que o 25 de Abril permitiu derrubar uma ditadura, que começou militar e que o Sala-zar transformou em fascista de modelo mussoliniano. E o 25 de Abril, derrotando essa ditadura, que durou em Portugal durante 48 anos, abriu as portas para a liberdade e para a recuperação da dignidade do povo. Mais do que isso: travou a Guerra Colonial que durava em possessões portuguesas havia já 13 anos, permitindo a descolonização e, a partir daí, o desenvolvimento do País.»
-As dificuldades actuais do País não lhe causam nenhum problema nesse sentido? Não o desencantam?
«As dificuldades do País resultam da implantação do sistema capitalista em Portugal, fazendo parte do arco ocidental das chamadas democracias parlamentaristas, ou democracias representativas. Foi exactamente por causa disso que, durante o chamado PREC [Processo Revolucionário em Curso], eu entrei em conflito de carácter ideológico, podemos dizer assim, com os meus camaradas do MFA que comigo partilhavam o Conselho da Revolução.»
-Portanto, o seu caminho era outro?
«De início, eu, que não percebia nada de política, era um militar que perante as circunstâncias me vi compelido a fazer o que fiz, a preparar o plano de operações e a comandar o 25 de Abril, vi-me impelido a ter que também tomar parte na política. No decurso do processo, encarei outra hipótese de levar por diante a instauração de um regime político diferente.»
-Gostaria que Portugal tivesse seguido esse caminho?
«Gostaria muito. Se bem que reconheça as tremendas dificuldades que iríamos encontrar pela frente para levar por diante esse projecto, de instauração de um regime de democracia directa. O Melo Antunes, por exemplo, que era o papa político do MFA, quando falei com ele sobre esse assunto...»
-Sucintamente, que regime seria este, essa democracia directa?
«Não tenho isto bem escalpelizado, porque não existe esse regime em nenhum país do mundo. Encaro-o...»
(continua)
(continuado)
-É por isso que eu lhe faço a pergunta.
«E esse era o argumento dos meus camaradas - diziam: "Mas onde é que tu encontras em qualquer país do mundo esse regime?" Eu dizia: "Não encontro em nenhum, mas fazemos nós!"»
-Mas como é que explica isso?
«Democracia, etimologicamente, é o poder do povo. Poder de povo que não existe numa democracia burguesa. A democracia burguesa resulta do poder da classe dominante. Desde 1789, com a Revolução Francesa, é assim.»
-Qual é o mais aproximado que encontra no mundo?
«Não sei. Aquilo que poderia ter acontecido seria dentro de uma perspectiva luxemburguista, a criação de grandes assembleias, assembleias populares. Por exemplo, ao nível de freguesias, porque temos um país dividido administrativamente em freguesias, concelhos, etc...»
-Desculpe-me a crueza da pergunta, mas acredita nessa utopia ainda hoje?
«Acredito profundamente. As pessoas têm tendência logo para dizer: "Então e querias o operário para ser primeiro-ministro?" Não! Podia ser o senhor doutor, professor, jubilado, um tipo óptimo que era escolhido pelo povo porque era o melhor! Os melhores de todos! Suponha uma área de freguesia com mil habitantes: desses mil habitantes, as pessoas conhecem-se, em assembleia podem reunir-se. Todas as pessoas que quiserem ir à assembleia vão à assembleia, discutem os problemas da comunidade e a certa altura começam a ser visíveis aquelas personalidades que, ou pela sua inteligência, pelo seu carácter...»
-E esse país teria um governo eleito de que forma?
«De forma directa, a democracia directa! Temos de eleger uma assembleia de freguesia, de mil pessoas temos de reduzir a cinquenta, vamos a eleições!, e as pessoas lá punham o voto secreto e elegiam o fulano A, B ou C - não há partidos - para formarem a assembleia de freguesia, que passava a gerir os interesses dessa freguesia. Desses cinquenta escolhiam-se por eleição os dez melhores para uma assembleia municipal. E dentro da assembleia municipal escolher-se-ia para uma assembleia de distrito, ou nacional popular, da qual finalmente emergisse para um governo! Da base ao topo, era uma eleição directa.»
-Essa sua utopia não avançou, nunca avançou em nenhum país do mundo...
«Mas podíamos ter nós implantado!»
(...)
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E pronto... está tudo dito sobre o grau de cultura política dos autores da Abrilada!
Sobre isto... estamos conversados!
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