quarta-feira, 22 de outubro de 2014

PORTUGAL ESTÁ À VENDA !






O caso PT é o epílogo de uma longa história de privatizações, gestão deficiente, ganância e alienações ao desbarato. A crise e a falta de liquidez do País fazem o resto. Ninguém está inocente, nem o Estado nem os privados. Veja um filme do qual não conseguirá sair:


A vida da PT (Portugal Telecom) dava um filme.   Em 1999, data de entrada do "gestor modelo" Zeinal Bava na empresa, ela valia 11 380 milhões de euros.   No ano seguinte, processa-se a privatização e o Estado fica com 500 ações douradas (de que abriria mão, com a vinda da troika, em 2011).   Essa golden share viria a ser importante para travar a OPA do Grupo Sonae em 2007, com o argumento do risco de posterior venda a estrangeiros...   Começa a aposta no Brasil e, em 2004, a empresa atinge o seu zénite, com um valor em bolsa de cerca de 11 400 milhões de euros.   Foi há dez anos.   Hoje, valerá menos de 10 mil milhões.   Desvalorizou-se, numa década, o equivalente a uma verba superior ao que o Estado paga, por ano, em juros da dívida pública.   Ou, se quisermos estabelecer outra comparação, a perda de valor da PT ultrapassa o custo, por ano, do Serviço Nacional de Saúde.   Mais, enfim, do que o total do défice das contas públicas previsto para 2014.   Como foi possível?

O pesadelo aconteceu devido ao facto de Portugal estar a ser vendido a retalho e a preço de saldo.   A história da PT é o epílogo de um longo período de depauperamento da economia nacional.   A PT era uma empresa de vanguarda, um exemplo de inovação, agressividade comercial e internacionalização, que a ganância de alguns acionistas e um acto de gestão terceiro-mundista - a inexplicável exposição ao Grupo GES - deitou abaixo.   Atónitos, os portugueses constatam que, afinal, a empresa terá sido gerida, nos últimos anos, de lápis na orelha.   Mesmo assim, Zeinal Bava, depois de ter "entregue" a PT à Oi, sai do grupo brasileiro com uma indemnização de (valores não desmentidos) 5,4 milhões de euros.

Engarrafar e vender o ar

Porque deixámos que quase todos os sectores ditos estratégicos (o que quer que isso seja) caíssem em mãos estrangeiras?  A responsabilidade deve ser assacada ao Estado - e aos governos PS, PSD e CDS - ou, também, aos privados?   Quem não se lembra da venda do Banco Totta & Açores ao Grupo Champalimaud e do seu desaparecimento nas goelas do gigante espanhol Santander?   Onde param as boas intenções do grupo de empresários que, patrioticamente, produziram documentos a jurar velar pela manutenção dos centros de decisão em Portugal?   Pois não foram eles os primeiros a vender tudo e mais alguma coisa, pela melhor oferta?

Para João Cravinho, antes de haver sectores estratégicos "teria de haver estratégia", coisa que, na opinião do ex-ministro socialista dos governos Guterres, "não existe, nem no sector público nem no sector privado".   Mais, o alheamento das autoridades deve-se à teoria de que "não faz sentido ter uma estratégia", quando tudo se resume a questões "que se resolvem no e pelo mercado, deixando que as leis da concorrência funcionem".
E, no entanto, a lei dos sectores estratégicos, publicada a 15 de Setembro, até parece salvaguardar o essencial, talvez tarde de mais:   assegurar os "activos estratégicos essenciais para garantir a defesa e segurança nacionais e segurança do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional, nas áreas da energias, dos transportes e comunicações, enquanto interesses fundamentais de segurança pública".   

Mas basta pensar na privatização, ou, para sermos mais justos, na concessão a privados da exploração das Águas de Portugal, para concluir que só o ar que se respira não está privatizado porque ainda não é possível ser consumido engarrafado.

Cimentos, banca, estaleiros navais, siderurgia ou até empresas que nos habituámos a ver exportadoras, como a Sorefame, ou desapareceram, ou perderam importância ou caíram em mãos estrangeiras.   Algumas, como a CIMPOR, mantêm o centro de decisão em Portugal (apesar de ser detida, em 100%, por capitais brasileiros).   Outras nem isso.   Opções ideológicas à parte, o Estado não pode ser culpado de tudo nem tem de ser empresário.   O raquitismo das empresas nacionais e a necessidade de liquidez do País, quer no sector público quer no privado, é que representam as verdadeiras causas da "venda de Portugal" ao desbarato.   A tudo isto não foi alheio o aliciamento de governos incautos e sedentos de votos pelo dinheiro fácil do crédito internacional, aliado à estratégia norte-europeia de desmantelamento do sector produtivo dos países com economias menos pujantes.   O endividamento subsequente levaria à venda baratinha do que era apetecível nesses países (um cenário que também vimos na Grécia) a grandes grupos internacionais.   Parece um plano...

O que é curioso é que os compradores nem sempre vêm de onde se espera.   Por exemplo, os 4,7 mil milhões de euros das privatizações de EDP (2 690 milhões), da REN (387 milhões) e da Caixa Seguros (1 632 milhões) provêm de grupos chineses, respectivamente a Three Gorges, a State Grid (agora também interessada na EFACEC) e a Fosun, que se tornaram, assim, os principais animadores das privatizações portuguesas.   Por ironia, estas empresas são todas imensas golden-shares do Estado chinês, que também aprecia o funcionamento do mercado - mas à sua maneira...

Mas voltemos ao velho argumento:   deixar que o mercado e a concorrência funcionem.   De acordo.   Mas, para o economista Ricardo Cabral, professor da Universidade da Madeira "a perspectiva de um governo não deve ser a de um mero accionista".   Dado o seu peso, o Estado tem de agir em prol do "interesse público".   E de acordo com o investigador, os governos devem ter em conta também os outros impactos na globalidade da economia.
Mas não tem sido isso que tem acontecido, já que as avaliações são feitas a olhar para o "valor accionista" das empresas, destaca Cabral, criticando alguns aspectos dos programas de privatização dos últimos anos.   "Não parece que tenha sido um grande sucesso", afirma.  "Privatizámos quase tudo, nas últimas décadas e não ganhámos muito com as privatizações no seu todo.   As receitas das privatizações não têm contribuído para reduzir a dívida pública, que aumentou.  E a agravar isso, temos, neste momento, menos instrumentos para a gestão económica do País", com a maior parte das empresas privatizadas a terem ficado nas mãos de não residentes.

Também se tem falado, com preocupação, de eventuais aumentos pós-privatização dos preçários dessas empresas.   Sobretudo daquelas que possam ter impactos importantes na competitividade de sectores estratégicos da Economia, como o turismo e os exportadores.  Disso é emblemático o caso da ANA - Aeroportos de Portugal, cuja operação foi concessionada, há dois anos, aos franceses da Vinci, e cujos aumentos sucessivos das taxas aeroportuárias têm suscitado polémica.   Desde que foi privatizada, a ANA já aumentou quatro vezes as suas taxas e tenciona continuar a fazê-lo:   até 2022 as taxas deverão sofrer incrementos de mais de 20 por cento.   O presidente da Ryan Air, Michael O'Leary, já afirmou que o modelo de taxação praticado pela operadora é caraterístico de "regimes comunistas".   Os responsáveis da ANA deverão ir esta quinta-feira, 15, ao Parlamento prestar esclarecimentos sobre os polémicos aumentos.

Para Francisco Louçã, "Portugal está transformado em sucata", mas, mesmo assim, e recordando que o crédito às empresas caiu 40% em agosto, "o Estado devia ter poder de regulação, mesmo depois do 'assucatamento'".   A concessão de crédito depende da banca mas não tem sido possível usar esta ferramenta para bombear sangue para a economia nacional.   Até mesmo o banco público, a Caixa Geral de Depósitos, por ter o menino do BPN nos braços, perdeu, em parte, essa capacidade.

Quanto vale a TAP ?

João Cravinho, que foi ministro do Equipamento, adverte:   "Quando a Mota Engil 'soltar' a Martifer, esta vai cair nos braços de alguém..."   E volta a defender a dama do malogrado novo aeroporto:   "A TAP vale o que quiserem dar. Mataram a TAP no dia em que descartaram a hipótese de construir um aeroporto capaz de receber mais 20 ou 30 voos."
 Se um novo aeroporto era um preço um bocado elevado a pagar pela valorização da companhia aérea nacional, esta bem pode ser, no entanto, o exemplo de uma empresa com um preço impossível de medir em euros.   A TAP é, mal comparado, como o hino ou a bandeira, um símbolo nacional, junto das comunidades e da lusofonia.   A ponte aérea dos retornados, em 1975, nunca teria sido possível se o Estado não tivesse à sua disposição este instrumento.   Essa componente de defesa nacional mantém-se:   quem valeria aos 200 mil nacionais em Angola, se houvesse necessidade de uma evacuação rápida?

Mas o factor psicológico, simbólico ou de soberania não é o único a contabilizar, nestas contas imensuráveis.   Nas contas de Ricardo Cabral, a TAP gera um valor de entrada anual de divisas em torno dos 27,5 mil milhões de euros - 13% da dívida externa líquida.   Cerca de três quartos da operação é vendida no estrangeiro.   Com o País ainda à beira da bancarrota, com um grave défice da balança de pagamentos e ainda sem a ameaça de saída do euro dissipada, "as divisas geradas direta e indiretamente pela TAP são preciosas".   À luz destes argumentos, a serem pertinentes, a TAP já não seria uma joia da coroa ou um anel:   seria o próprio dedo indicador.

Com quatro interessados (um consórcio entre o português Miguel Pais do Amaral, Frank Lorenzo, ex-proprietário da Continental Airlines, e o grupo Barraqueiro, os espanhóis da Globalia, os brasileiros da Azul e Gérman Efromovich), o processo não avança.   Uma das razões será a falta de consenso no seio do próprio Governo, quanto à participação a vender e em relação ao timing da respectiva alienação.   E esta história, a acabar como a da PT, também dava um filme.

Tirem-nos dele.