quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Os ricos que espoliam o Estado ignoram estas existências. Nada lhes tira o sono!

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Um velho pobre é uma abominação. É uma condenação à solidão, à doença, à miséria e à injustiça. Um velho pobre é invisível aos olhos ingratos da sociedade. Certa gente abandona os seus velhos à porta dos hospitais e parte para nunca mais voltar. Outra gente abandona-os num lar imundo e paga uma mensalidade para nunca mais os visitar. Conheci uma velha que há mais de 30 anos não via os filhos e os netos. Ninguém se ocupava dela e apesar disso conseguia gracejar sobre o seu estado e destituição. Temos crueldades para com os velhos impensáveis em sociedades como a chinesa, onde se honram os antepassados; ou a árabe, onde os pais são cuidados pela família alargada. Portugal é um país cruel com os seus velhos, desleixa-os, abandona-os e esquece-os. O Estado tem, a seu modo, cumprido essa função de velar pelos cidadãos que não podem velar por si.

Este Orçamento do Estado é cruel para com os velhos e reformados, os das esqueléticas pensões, os destituídos. Os velhos com direito a um Complemento Solidário do Idoso, os que têm rendimentos até 5 mil euros por ano (como é que alguém vive com este dinheiro?) ou rendimentos conjugais de cerca de 8 mil euros, não têm direito a sigilo bancário e são inspecionados e fiscalizados. Os filhos são inspecionados. Os velhos pobres, que não têm conforto nem dignidade assegurados, há muito que prescindiram de muita coisa nas suas vidas. O seu cabaz de compras há muito foi diminuído.

Prescindiram de ter dentes ou tratamentos dentários. O cheque-dentista é impossível de obter e a maioria nem sabe que existe. Prescindiram de ver televisão por cabo, viveram quase a vida toda num mundo a preto e branco. Prescindiram de caminhar nas ruas da cidade porque nos socalcos e empedrados as quedas podem ser fatais. Prescindiram de comer fruta fresca, aguentando-se com a fruta sovada da mercearia ou com uma peça de fruta por semana. Prescindiram de comer peixe porque não têm dinheiro para a iguaria. O carapau e a cavala nem sempre aparecem ou têm distribuição nos bairros. Prescindiram do hipermercado porque não têm carro e fica longe.

Prescindiram de tratar o reumatismo, a osteoporose, a hipertensão, a gota, o colesterol, a tiroide. Não têm dinheiro para a farmácia. Prescindiram do sono. Prescindiram de ir ao cinema porque é caro. Prescindiram de ir ao teatro porque é ainda mais caro. Prescindiram de fazer exercício físico porque o ginásio é um luxo de ricos, incluindo velhos ricos. Prescindiram da fisioterapia. Prescindiram das análises clínicas. Prescindiram do bife trocado pela carne de cozer. Prescindiram do cabeleireiro porque é um luxo. Prescindiram de ter um animal doméstico porque não têm dinheiro para o alimentar e vacinar. Prescindiram do café porque é uma despesa. Prescindiram de comer em restaurantes porque o gesto lhes consumiria a pensão. Prescindiram de visitar os amigos e parentes que estão longe porque não têm dinheiro para o transporte. Prescindiram de comprar óculos. Prescindiram de ler o jornal, tricotar, fazer croché. Prescindiram de viajar porque a única viagem que esperam será no caixão para o cemitério. Prescindiram de quase tudo o que traz um rasto de alegria e um módico de felicidade. Conversam uns com os outros num país de velhos.

Na solidão das casas e dos quartos, aguardam a chegada do inverno e do frio que lhes rói os ossos porque não têm dinheiro para as faturas da eletricidade. Alguns morrerão gelados ou da gripe. Prescindiram do banho quente. Quem não conhece estes velhos não conhece o pobre país que temos. Obrigá-los a pagar uma fatia, mínima que seja, do orçamento, é uma obscenidade. Fiscalizá-los também. Lá em cima, no assento etéreo, os ricos que espoliam o Estado ignoram estas existências. Nada lhes tira o sono.

(Clara Ferreira Alves - publicado na revista Única – Expresso, de 6 de Novembro de 2010)

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2 comentários:

kakauzinha disse...

É do conhecimento de todos, pelo menos dos que querem ver. Faz chorar porque todos caminhamos para velhos. Faz chorar lágrimas de sangue. E a juntar a tudo o que jamais se deveria perder, perde-se também a dignidade. A dignidade que se vai ganhando e enriquecendo ao longo da vida. Transformam-se os idosos em bonecos atirados para um canto, sem qualquer utilidade. E com tanto luxo que os governantes usufruem vergonhosamente, tirando aos idosos tudo o que podem! Tanto dinheiro mal gasto, tantas verbas roubadas para os bolsos de alguns.

Esta gentalha de agora não se preocupa com a idade porque roubam hoje para o dia de amanhã. Porque se os esperasse o mesmo destino arrepiavam caminho. É pena que assim seja, não é justo. Que vergonha!

(*)

Milan Kem-Dera disse...

É um comportamento em espiral: quanto mais difíceis as condições de vida e de subsistência, mais os filhos têm de trabalhar e menos tempo lhes sobra para tratar dos pais. Daí que tenham de os "despachar" para algum lado e de qualquer maneira.
Se, além disto, o Estado lhes vai à carteira, dos filhos nos ordenados (os que ainda têm emprego...) e dos velhos lhes corta nas magras reformas e nos parcos subsídios, só fica a sensação de que tudo e todos lhes querem acelerar a morte - o Estado e os filhos.
E não há volta a dar nem retorno a qualquer situação de dignidade para os velhos, antes os considerando um estorvo por toda a sociedade.

A medicina progride e avança para lhes prolongar a vida, quando a vida para eles se tornou, há muito, uma dádiva não de Deus mas do diabo!

Enquanto isso, os pulhas que têm na mão a resolução destes e muitos outros problemas, apenas vivem em função dos seus próprios interesses, importando-lhes apenas encher o seu próprio bandulho.

Esperança zero, portanto, para os velhos e para esta civilização ocidental...

(*)