quinta-feira, 2 de junho de 2011

Uma carta insistente, irritante e desgraçadamente actual... até 2040!

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A fábula do Raposo e do Coelho


Caro dr. Jorge Coelho, como sabe, V. Exa. enviou-me uma carta, com conhecimento para a direção deste jornal.   

Aqui fica a minha resposta.
 
Em 'O Governo e a Mota-Engil' (crónica do sítio do Expresso), eu apontei para um facto que estava no Orçamento do Estado (OE):   a Ascendi, empresa da Mota-Engil, iria receber 587 milhões de euros.   Olhando para este pornográfico número, e seguindo o economista Álvaro Santos Pereira, constatei o óbvio:   no mínimo, esta transferência de 587 milhões seria escandalosa (este valor representa mais de metade da receita que resultará do aumento do IVA).
 
 Eu escrevi este texto às nove da manhã.   À tarde, quando o meu texto já circulava pela Internet, a Ascendi apontou para um "lapso" do OE: afinal, a empresa só tem direito a 150 milhões e não a 587 milhões.   Durante a tarde, o sítio do Expresso fez uma notícia sobre esse lapso, à qual foi anexada o meu texto.   À noite, a SIC falou sobre o assunto.
Ora, perante isto, V. Exa. fez uma carta a pedir que eu me retratasse.   Mas, meu caro amigo, o lapso não é meu.   O lapso é de Teixeira dos Santos e de Sócrates.   A sua carta parece que parte do pressuposto de que os 587 milhões saíram da minha pérfida imaginação.   Meu caro, quando eu escrevi o texto, o 'lapso' era um 'facto' consagrado no OE.   V. Exa. quer explicações?   Peça-as ao ministro das Finanças.   Mas não deixo de registar o seguinte:   V. Exa. quer que um zé-ninguém peça desculpas por um erro cometido pelos dois homens mais poderosos do país.   Isto até parece brincadeirinha.

Depois, V. Exa. não gostou de ler este meu desejo utópico:   "quando é que Jorge Coelho e a Mota-Engil desaparecem do centro da nossa vida política?".   A isto, V. Exa. respondeu com um excelso "servi a Causa Pública durante mais de 20 anos".   Bravo.   Mas eu também sirvo a causa pública.   Além de registar os 'lapsos' de 500 milhões, o meu serviço à causa pública passa por dizer aquilo que penso e sinto.   E, neste momento, estou farto das PPP de betão, estou farto das estradas que ninguém usa, e estou farto das construtoras que fizeram esse mar de betão e alcatrão.   No fundo, eu estou farto do atual modelo económico assente numa espécie de new deal entre políticos e as construtoras.   Porque este modelo fez muito mal a Portugal, meu caro Jorge Coelho.   O modelo económico que enriqueceu a sua empresa é o modelo económico que empobreceu Portugal.

Não, não comece a abanar a cabeça, porque eu não estou a falar em teorias da conspiração.   Não estou a dizer que Sócrates governou com o objetivo de enriquecer as construtoras.   Nunca lhe faria esse favor, meu caro.   Estou apenas a dizer que esse modelo foi uma escolha política desastrosa para o país.   A culpa não é sua, mas sim dos partidos, sobretudo do PS.   Mas, se não se importa, eu tenho o direito a estar farto de ver os construtores no centro da vida coletiva do meu país.  
Foi este excesso de construção que arruinou Portugal, foi este excesso de investimento em bens não-transacionáveis que destruiu o meu futuro próximo.   No dia em que V. Exa. inventar a obra pública exportável, venho aqui retratar-me com uma simples frase:   "eu estava errado, o dr. Jorge Coelho é um visionário e as construtoras civis devem ser o alfa e o ómega da nossa economia".  

Até lá, se não se importa, tenho direito a estar farto deste new deal entre políticos e construtores.

(Henrique Raposo, In Expresso de 30/10/2010)

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