segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O NÚMERO QUE ESTÁ TATUADO NOS BRAÇOS DOS PORTUGUESES

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O NÚMERO DO CONTRIBUINTE


Aqui há uns anos houve uma discussão sobre o número único a propósito do cartão do cidadão.   É uma matéria pouco popular, tida como importando apenas aos intelectuais e aos políticos, que as pessoas comuns vêem com muita indiferença.   Se lhes parece mais eficaz que cada um tenha um número único que sirva para o identificar num bilhete de identidade, para reconhecer uma assinatura, na Segurança Social, no fisco, numa ficha médica, num cartão de crédito ou de débito, qual é o problema?   Se isso lhe poupa tempo e papéis, qual é a desvantagem?   Se isso permitir perseguir um criminoso, que importa existir uma base de dados com o ADN das pessoas?   E se as tecnologias o permitirem, como permitem, qual o mal em podermos vir a ter um chip como os cães, ou uma etiqueta electrónica como as crianças à nascença, por que razão é que nós não podemos ser numerados por um qualquer código de barras tatuado no braço?
 
 
A maioria das pessoas é indiferente ao abuso do Estado nestas matérias se daí vier uma aparente maior eficácia e menor burocracia.   E os proponentes destas medidas, uns tecnocratas, outros fascinados pelos tecnocratas, outros ainda gente mais perigosa e securitária cujo ideal de sociedade perfeita é o 1984 de Orwell, todos manipulam a opinião contra os antiquados defensores dos "direitos cívicos", que continuam a achar que não se deve ter número único, chip, ou código de barras, em nome dessas coisas tão de "velhos do Restelo" como sejam as liberdades e o direito do indivíduo em ter uma reserva da sua vida íntima e privada, sem intromissão indevida do Estado onde ele não deve estar.


Infelizmente, insisto, a indiferença cívica é o pano de fundo de muitos abusos e a sociedade e o Estado que estamos a construir são os ideais para uma sociedade totalitária.   Se uma nova polícia política aparecer - e para quem preza a liberdade esse risco existe sempre -  não precisa de fazer nenhuma lei nova, basta usar os recursos já disponíveis para obter toda a informação sobre um cidadão que queira perseguir.


A promessa que nos é feita é de que os dados "não são cruzados".   Mas esta afirmação não só não é verdadeira como não garante nada.   Não impede um serviço de informações que queira abusar, de obter cumplicidades e "cruzar" dados, não impede uma polícia de fazer o mesmo (o episódio do acesso da PSP às filmagens não editadas sem ordem judicial é um exemplo de práticas costumeiras que só são escrutinadas depois de um acidente de percurso), não impede a utilização de software mais sofisticado para fazer buscas na Internet, muito para além da informação já vasta que se pode obter no Google.   E se somarmos as câmaras de vigilância e outros meios cada vez mais generalizados de controlo dos cidadãos, mais nos preocupamos com as liberdades no mundo orwelliano em que já vivemos.


E quanto ao "cruzamento de dados" a partir de um número único com informação indevida, tudo isso já existe e chama-se NIF, número de identificação fiscal, ou mais prosaicamente, "número de contribuinte".   De há dez anos para cá, o Governo Sócrates e depois o Governo Passos Coelho transformaram o fisco no mais parecido que existe com uma polícia global, e uma polícia global é também política, e o número de contribuinte no verdadeiro número único dos portugueses, cujo acesso permite todos os cruzamentos de dados e uma violação sem limites da privacidade de cada cidadão.   Se somarmos a isso o facto de o fisco ser a única área da lei em que a presunção da inocência não existe e o ónus da prova cai no cidadão, temos um retrato de um Estado de excepção dentro de um Estado que se pretende de direito.

 
E não preciso de estar a recitar a litania do combate à evasão fiscal, porque este caminho de abuso tem sido trilhado exactamente porque o combate à evasão fiscal tem sido ineficaz onde deveria ser.   O furor do Estado volta-se contra as cabeleireiras, os mecânicos de automóveis e as tabernas, mas ignora os esquecimentos de declaração de milhões de euros, que só são declarados quando descobertos e não merecem uma palavra de condenação nem do ministro das Finanças, nem do Banco de Portugal, nem de ninguém dos indignados com a factura dos cafés.   E é exactamente porque o combate à evasão fiscal falha, ou porque a economia está morta, ou porque os Monte Brancos são mais numerosos do que todas as montanhas dos Alpes, dos Andes, do Himalaia, que se assiste a uma espécie de desespero fiscal que leva o Estado (os governos) a entrar pela liberdade e individualidade dos cidadãos comuns de forma abusiva e totalitária.   Digo totalitária, mais do que autoritária, porque a tentação utópica de "conhecer" e controlar a sociedade e os indivíduos através da monotorização de todas as transacções económicas é de facto resultado de mente como a do Big Brother.

 
Num computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada através do número de contribuinte e dos poderes discricionários da Autoridade Tributária.   Se de manhã ao pequeno-almoço não pedir factura do café, pode vir um fiscal e multar-me (não pode porque é ilegal, impossível de facto, e o Governo anda a mentir-nos a dizer que já o fez quando se devem contar pelos dedos da mão as contra-ordenações realizadas, se é que há alguma à data do anúncio),  e para lavrar o "auto" terá de dizer onde estou, o que consumi sem factura e informar o Estado sobre se tomo chá, café ou chocolate, doces ou salgados, etc.   Depois passo por uma livraria e na factura estão os livros que comprei e está o número de contribuinte.   Hum!   Este anda a ler livros subversivos, ou quer saber coisas sobre a Tabela de Mendeleev (a química é sempre perigosa), ou uma história sexualmente bizarra como a Lolita, (diga aí ao assessor do senhor ministro que um boato de pedofilia é sempre mortífero e o homem lê livros sobre isso), ou o Vox do Nicholson Baker (uma história de sexo por telefone que o procurador Starr queria usar como prova contra Clinton, pedindo à livraria que lhe confirmasse a compra do livro por Monica Lewinsky, o que a livraria recusou e bem).   Depois foi almoçar, e pelo número de contribuinte verifico que almoça muitas vezes a dois, e dois é um número suspeito.   Coloque lá no mapa o sítio do pequeno-almoço, mais a livraria, mais o restaurante, e as horas.   E depois?   A Via Verde cujo recibo tem o número de contribuinte mostra que entrou na portagem X e saiu na portagem Y.   Interessante, o que é que ele foi fazer ao Entroncamento?   E levantou dinheiro no Multibanco.   Muito ou pouco?   Bastante.   Veja lá as facturas que ele pagou no Entroncamento.   Aqui está, comprou uma mala de viagem.   Então a factura?   Não há, comprou nuns chineses, mas foi visto com a mala na câmara de vigilância de um banco.   Anote aí para mandar uma inspecção do fisco e da ASAE aos chineses, imagine o que seria se nós não tivéssemos as imagens do banco!   O que é que ele vai fazer com a mala?   E por aí adiante.

 
A nossa indiferença colectiva face ao continuo abuso do Estado, que nada melhor nos dias de hoje revela do que o fisco, vai acabar por se pagar caro.   Muitos tentaram fugir ao fisco?   É verdade, muitos inclusive nunca pagaram impostos e vivem numa economia paralela, mas a sanha contra eles, que face ao fisco não tem direitos, nem defesa, nem advogados, contrasta com a complacência afrontosa com a fraude fiscal com os poderosos.   É que também nisso, na perseguição aos pequenos, se revela o mundo totalitário de 1984 e do Triunfo dos Porcos, em que alguns são mais iguais do que outros.   E pelo caminho, para garantir que os pequenos sejam apanhados na malha, pelo desespero de um fisco que quer sugar uma economia morta de recursos que ela não tem, é que se usa o número de contribuinte como número único, cruzado nos computadores das finanças, muito para além do que é necessário e equilibrado, numa ameaça às liberdades de cada português.

(Por José Pacheco Pereira, In ABRUPTO - 23/02/2013) (Imagem retirada daqui) (Sublinhados deste blogue)
 
 

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