POR QUE NÃO SAÍMOS DA CEPA TORTA
(…)
Este homem foi um perigo, ajudou, e muito, a
afundar-nos colectivamente, e seria hoje de novo um perigo, se não houvesse tão
recente e viva memória dos seus "feitos". Mas o que é interessante é
perceber que dele não nos defenderam muitos dos iluminados da nossa praça, à
direita e à esquerda, como agora também não seriam capazes de o fazer. A razão
por que me preocupa a reacção à entrevista é esta: este homem seria o populista
ideal, e muita gente abre-lhe alas, apenas porque ele fala alto e grosso, num
mundo em que Seguro é o que é, e Passos e Relvas são que são, e não suscitam
nem temor nem entusiasmo. Apenas tédio e preocupação.
Quando falei da nostalgia que alimenta esta
reacção à entrevista foi disso mesmo: a direita precisa de um inimigo e trata-o
como a quinta-essência das malfeitorias da esquerda, coisa a que nunca
pertenceu, porque precisa de encontrar identidade pela construção de um
adversário. Sócrates é o adversário ideal, e é por isso que foi com a sua
colaboração e assentimento que o Governo lhe abriu as portas da "sua"
televisão. Para além disso, calcula que, por muito que possa vir a ser atingido
por um ou outro remoque certeiro, Sócrates será um problema essencialmente para
o PS. Os estragos que Sócrates possa vir a fazer ao Governo serão sempre
entendidos como danos colaterais, aceitáveis pela enorme vantagem de ele
impedir, pela sua mera existência semanal na televisão, a consolidação da
liderança de Seguro. Por outro lado, a vendetta pessoal de Sócrates contra
Cavaco é também bem-vinda, porque, para o grupo à volta de Passos Coelho,
Relvas, Menezes e Ângelo, colocar o Presidente na ordem é uma necessidade
estratégica. (...)
O mesmo fenómeno de nostalgia e radicalização
existe à esquerda. A esquerda, principalmente a que está órfã no PS de Seguro,
enfileira atrás daquilo que pensa ser um cabo de guerra a sério e não de um
clone com falinhas mansas. Há demasiada orfandade na actual
"oferta"política para deixar um lugar para Sócrates e ele ocupa-o,
não porque queira o lugar de Seguro, mas também porque, para ele, as
dificuldades de Seguro serão a sua versão dos danos colaterais. O "animal
feroz" para "tomar a palavra", que nele significa o mesmo que
"tomar um castelo", sabe que prejudica Seguro, mas é suficientemente
obcecado com a sua pessoa e a sua missão para não se preocupar com isso.
A comunicação social, com quem Sócrates
manteve uma relação muito próxima até ao momento em que iniciou a sua queda,
quando, à maneira portuguesa, todos os que lhe apararam o jogo, o começaram a
calcar com a mesma veemência com que o adulavam, gosta de festa, e Sócrates
dá-lhes festa. Este homem que, como Relvas, mas com muito mais poder e
cumplicidades, usou todos os meios ao seu alcance para afastar os jornalistas
que se lhe opunham e punir todos os que o afrontavam, volta hoje a ser tratado
com a mesma complacência com que se aceitavam sem questionar os seus anúncios
propagandísticos e sua contínua manipulação dos factos e estatísticas.
(...)
A história da "narrativa" é
reveladora. Sócrates apresentou-se como pretendendo combater a
"narrativa" que a direita fazia da sua governação e queda, opondo-lhe
a sua própria "narrativa". Esta história das "narrativas",
um modismo para designar uma construção ficcional de eventos, preso exactamente
pelo fio da narrativa, é atractiva porque procede a uma selecção de factos,
moldados pela sequência cronológica escolhida, que pode não ser a que
aconteceu, e pela eliminação dos "factos-problema", que podiam
prejudicar a clareza ficcional da história. Na sua "narrativa",
Sócrates coloca o seu principal motor interior, a sua vontade, cuja
determinação varreu com tudo, bom senso, estudo, conhecimento, verdade, atenção
ao real, custos, condições, tudo. E levou-nos ao que se sabe.
É, no fundo, um argumentário político, que
pode ter uma maior ou menor aproximação à realidade ou à ideologia, e que serve
como discurso de justificação, mas não é, nem foi, o que aconteceu, não é a
realidade, nem a verdade. (...)
Não foi a entrevista que foi interessante. Foi
o seu efeito. O sucesso do retorno de Sócrates não é o sucesso do governante de
2005-2011, nem a sua reabilitação, mas o sucesso do populismo e da orfandade do
país político de 2013. Faz uma diferença. Faz toda a diferença.
(Por José Pacheco Pereira, In ABRUPTO)
1 comentário:
Temo que este país não saia da cepa torta por uma simples razão... o futebol. É um país onde as pessoas associam tudo ao futebol, a política é futebol, é mais forte o "inimiguismo" do que o desenvolvimento e interesse nacional (claro que em parte é um inimiguismo encenado).
Vai-se perceber porque é que o país está a falir primeiro que sporting benfica e porto, porque há interesse em que as pessoas vivam cegas em ver futebol em tudo o que mexe, e assim se possam manter sempre um dos partidos "grandes" no poder, tal como na bola.
Cumprimentos
Enviar um comentário