A retórica dos fugitivos
A última sessão do Parlamento no fim da I República acabou sem quórum. Tal era o descrédito da casa, que os deputados resolveram não comparecer. A última sessão do Parlamento 'ontem' (23/3), no fim de Sócrates ou no princípio do fim de Sócrates, acabou quase sem Governo. As sumidades da governação eclipsaram-se. Sócrates saiu de cena logo que Teixeira dos Santos acabou de falar. E Teixeira dos Santos nem se dignou ouvir Manuela Ferreira Leite. Ambos assumiram o registo de provocação constitucional em que têm vivido há muito tempo e que usaram para esconder o PEC IV da Assembleia, do Presidente, dos parceiros sociais, de toda a opinião pública. Foi de propósito. Ambos desejaram ter este fim.
Participar no debate com os deputados sobre o novo PEC era uma responsabilidade elementar do primeiro-ministro. O seu poder deriva do Parlamento. O seu dever é ouvir; e ouvir críticas, censuras, condenações, é também uma forma de ser responsabilizado. Mas como esperar responsabilidade de um governo e de um primeiro-ministro que aproveitaram a oportunidade do PEC IV para precisamente falsificarem e manipularem a responsabilidade pelo fracasso da sua governação?
Convém estarmos atentos ao que se está a passar. Muita manipulação e desinformação se prepara. Sócrates, como de costume, está a tentar o seu próprio branqueamento por ter conduzido o país para a bancarrota. Tornou-se um fugitivo que procura escapar pela única frincha que as circunstâncias permitem, atirando o ónus do que aí vem, da crise, da intervenção externa - como se o país não estivesse há muito tempo em crise - para os seus sucessores. O seu pedido de demissão é uma fuga, um artifício para torpedear a possibilidade de os portugueses o responsabilizarem.
É disto que se trata. Mas quem é que deverá ser responsabilizado por este momento crítico senão Sócrates? Quem é que nos governou nos últimos seis anos? Quem é que escondeu a situação real das contas públicas, quem contra todos os avisos e ameaças persistiu cegamente no erro e na mentira? E não foi Sócrates que apresentou PEC sucessivos com a colaboração do principal partido da oposição, ao mesmo tempo que não os cumpria? Não foi Sócrates que, dizendo agora "ou nós ou o FMI", finge que Portugal já tem recorrido à ajuda externa do Banco Central Europeu? Não foi Sócrates que atiçou a desconfiança dos mercados, expropriando Portugal da sua liberdade e independência?
Tem sido esta a admirável estabilidade de Sócrates. E é desta mesma estabilidade que ele agora se proclama curador. Entre uma estabilidade destrutiva e uma clarificação urgente, há alguém que não prefire a clarificação? Era assim que tudo fatalmente acabaria. Com um primeiro-ministro acossado e em fuga, recorrendo a todos os truques para falsificar a sua responsabilidade, vitimizando-se, e com um PS domesticado e desesperado por salvar o que resta.
Quem quiser perceber a manobra fugitiva de Sócrates que leia um texto do cientista político espanhol José Maria Maravall "Responsabilidade e manipulação" (está disponível na Internet). O caso estudado por Maravall é a conduta do PSOE espanhol nos anos 80. Para manipular o processo de responsabilização política pelos eleitores, os media foram apertados; escondeu-se informação relevante que permitisse acompanhar o Governo; falsearam-se os resultados das políticas governamentais; o partido começou a viver com férrea disciplina e centralismo para aparecer artificialmente unido na crise, culpou-se a oposição pelo que fez e não fez; o Governo apresentou as suas políticas como necessárias e inevitáveis.
Sócrates abraçou em absoluto esta retórica da manipulação da responsabilidade. É a sua única saída.
A responsabilidade não é dele, é de outros. A crise não é dele, é de outros. Muito haverá para dizer sobre este período deletério que Sócrates encarna na nossa política.
Um dia perguntaremos como foi possível.
Um dia perguntaremos como foi possível.
(Pedro Lomba, in Público em 2011-03-24)
(Imagens e sublinhados colocados por mim)
(Imagens e sublinhados colocados por mim)
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