.
1. Enquadramento da matéria
Discute-se a aplicação do
acordo ortográfico de 1990 (AO90). Este surgiu após várias tentativas goradas
de unificação da ortografia de Portugal e do Brasil, desde o início do século
passado. Uma dessas tentativas conseguia uma unificação de praticamente 100% e
mesmo assim não foi seguida por ambas as partes.
Ao fim de quase um século de
deriva gradual, tentou-se então uma vez mais regressar à quimérica “unificação”
com o AO90. Esta não só não é conseguida com o presente “acordo” como as
alterações propostas não colhem a aceitação dos especialistas. Nem do lado de
cá nem do lado de lá do Atlântico. Daí que chamar-lhe “acordo” seja um abuso.
Este facto foi olimpicamente ignorado e prosseguiu-se na aplicação cega de uma
completa inutilidade, recorrendo-se por diversas vezes nesta história a
expedientes, no mínimo, duvidosos (para não lhes chamar uma verdadeira batota,
de que é exemplo icónico o II Protocolo Modificativo) para levar esta empreitada
em frente, sem que daí advenha qualquer vantagem para os utilizadores da
língua.
Bastariam algumas questões
elementares:
– Vem resolver alguma coisa?
(Não)
– Serve para alguma coisa?
(Não)
– Melhora a situação anterior?
(Não)
Não deveria ser preciso mais
do que isto para ser evidente que o AO90 é um absurdo inútil, mas continuemos
para os pontos seguintes.
2. Objectivos do Acordo
Ortográfico
Unificação da língua: não
acontece
Simplificação da língua: não
acontece
Evolução da língua: não acontece
3. Vantagens decorrentes da
aplicação do Acordo Ortográfico
Não há.
4. Inconvenientes e problemas
resultantes da aplicação do Acordo Ortográfico
a) As “soluções” encontradas
pelo AO90 para “resolver” as diferenças ortográficas podem sintetizar-se em:
- admissão de facultatividades
naquilo que é irresolúvel (na prática, não só não resolve nada como aumenta a
confusão)
- referência à “forma
consagrada pelo uso” sem que esteja definido em lado nenhum o que está
consagrado pelo uso e o que não está; além de que quem está a aprender a língua
não tem forma de adivinhar isso
- referência à “norma culta”
(conceito já completamente ultrapassado) sem que esteja registada foneticamente
em lado nenhum essa dita norma culta
- convergência do Pt-Br para o
Pt-Pt: alteração de acentos/trema e hífenes
- convergência do Pt-Pt para o
Pt-Br: alteração de acentos e hífenes, amputação de letras
- para obedecer ao critério da
fonética, inventam-se formas novas para o Pt-Pt que, pasme-se, desunificam ao invés
de unificar
- afirma-se reiteradamente a
máxima de que “o que não se pronuncia não se escreve”, mas depois não se
aplica: basta pensar em todas as palavras começadas por “h”, ou em todos os
casos de “u” mudo a seguir ao “q”; afinal é para seguir a fonética ou não?
b) Com o AO90, há uma perda de
informação irrecuperável. Isto é comprovado pelo facto de não existir um
“anti-Lince” que reponha o português na forma correcta (sem AO90). Tal não é
possível porque se perde, por exemplo, a distinção entre formas verbais de
tempos diferentes (compramos/comprámos, chegamos/chegámos), a distinção entre
“pára” e “para” e tantos outros exemplos. É sempre possível passar de um texto
sem o AO90 para um texto com o AO90, mas o inverso não é verdadeiro.
Desta perda de informação
decorre uma menor clareza na leitura, ou seja, na transmissão da mensagem para
o receptor. Isto não é bom, útil ou minimamente desejável. Os defensores do
AO90 parecem centrar-se nas (alegadas) vantagens da escrita, esquecendo-se
daquilo que é mais importante num texto escrito: a sua leitura.
c) Afirma-se que o AO90
“simplifica” a língua e ao mesmo tempo permitem-se duplas (ou quádruplas ou
múltiplas) grafias, o que é uma contradição à própria noção de ortografia. Ou
seja, se, em vez de saber sem qualquer dúvida como se escreve “caracterizámos”,
temos, em vez disso “caracterizámos/caraterizámos/caracterizamos/caraterizamos”,
em que medida é que isto constitui uma simplificação? Dir-se-ia antes que ficou
quatro vezes mais complicado. Chamar a isto “ortografia” é um abuso.
d) Com o AO90, em vez de
assegurar a sobrevivência da língua, o que se está a verificar na prática é a
contribuição para a extinção a passos largos do português de Portugal. Com o
AO90, este já está a ser completamente eclipsado, por exemplo, em qualquer
pesquisa na Internet e desde logo em inúmeros “sites” de acervo e/ou repositório
(a Wikipedia, por exemplo). Experimente-se pesquisar “material elétrico” sem
especificar que queremos páginas de Portugal e veja-se o que acontece. Repita-se
a experiência com “material eléctrico”. Em que é que isto pode ser bom para as empresas
portuguesas?
e) Com o AO90, para
“aproximarmos” o português de Portugal (Pt-Pt) do português do Brasil (Pt-Br),
afastamo-lo das restantes línguas europeias; não se vê qualquer vantagem daí
decorrente, nem para os portugueses que queiram aprender outras línguas nem
para os estrangeiros que queiram aprender português. Qualquer professor
competente consegue explicar as diferenças entre o Pt-Pt e o Pt-Br sem que isso
constitua um obstáculo intransponível para quem aprende. (Continua a ter de
explicá-las, em qualquer dos casos, porque, mesmo que a ortografia ficasse
igual – que não fica – a sintaxe e a semântica continuam a ser diferentes.)
a) O AO90 altera, sim, a forma
como as palavras se pronunciam. Ouve-se até à exaustão o argumento da pharmácia/farmácia
para justificar a “evolução” da língua, mas esses defensores do AO90
esquecem-se de que ao passar de “pharmácia” para “farmácia” não se alterou
absolutamente em nada a forma como a palavra era lida.
Ao passar de “fraccionar” para
“fracionar” altera-se, sim, inegavelmente, a leitura da palavra. Ou de
“espectador” para “espetador”, para dar um exemplo mais conhecido...
f) Com o AO90, continua a ser
necessário haver duas traduções, uma para o Brasil e outra para os restantes
países de língua oficial portuguesa. A necessidade de duas versões diferentes
era apresentada como um dos principais motivos para a indispensável e propalada
“unificação”. Continua... exactamente na mesma.
g) Por causa do AO90, já houve
gastos inúteis e incompreensíveis, nomeadamente no ensino e na administração
pública, com a “nova” “ortografia”. Mais grave ainda porque foram feitos sem que
esta tivesse sido sequer definida com rigor (provavelmente porque é impossível
definir-se com rigor aquilo que assenta em "regras" que o negam à
partida).
h) O documento de base do AO90
contém erros, ambiguidades, incongruências e parte de premissas falsas. Contém
opiniões (tão válidas como quaisquer outras...) e nem um único estudo
científico que sustente o que é afirmado. Há, pelo contrário, e como se sabe,
muito mais pareceres negativos do que positivos (estes, aliás, no singular...
porque só há um). Além de isto ser academicamente inacreditável, um documento
assim não tem qualquer credibilidade. Não pode servir de base a coisa alguma e
muito menos à ortografia de mais de duzentos milhões de pessoas.
h) Uma vez que as “regras” do
AO90 são sobretudo a consagração das excepções, há um fenómeno evidente de
sobrecorrecção e de total confusão por parte de quem escreve. Se muitas pessoas
escrevem com o AO90 (em muitos casos, unicamente porque a isso são obrigadas),
isso deve-se sobretudo ao facto de ser possível carregar num botão para
transformar a ortografia automaticamente e não tanto porque saibam
efectivamente aplicar a “nova” “ortografia” (uma vez mais, como saber aplicar
aquilo que não tem regras claras?). Isto, na prática, corresponde a um inegável
analfabetismo funcional.
i) Com o AO90, em vez de uma
unificação, temos uma multiplicação de ortografias. Em vez de Pt-Pt e Pt-Br,
temos: Pt-Pt, Pt-Br, AO90-Pt, AO90-Br e ainda o uso de critérios diferentes
para o estabelecimento daquilo que se considera ser o AO90 em Portugal e no
Brasil... variações deixadas ao critério de cada um, porque o documento de base
não é claro ou é omisso nas diversas possibilidades. Porquê esta falta de clareza
e esta omissão? Porque as “soluções” apresentadas são uma farsa que na prática
não resolve nada.
5. Proposta que apresenta
Suspensão imediata da
aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. Obrigar milhões de pessoas a alterar a
sua ortografia sem que isso sirva para alguma coisa de válido é de uma falta de
senso indescritível.
Em vez de uma “unificação”
ortográfica reconhecidamente impossível a esta altura, promovamos o intercâmbio
cultural, científico e de oportunidades de trabalho entre todos os países de
língua oficial portuguesa. Reforcemos o ensino de Português no estrangeiro em
vez de fecharmos leitorados. Não é preciso unificar a ortografia para fazer
nada disto e seria muito mais eficaz para a promoção da língua no mundo. Existem
mecanismos democráticos mais do suficientes para anular este erro colossal: uma
iniciativa legislativa de cidadãos pela revoção da RAR 35/2008 (o instrumento
que forçou a entrada em vigor do AO90) ou uma iniciativa legislativa dos
próprios deputados para o mesmo efeito.
6. Outras questões
Este acordo ortográfico não
resolve nenhum dos alegados “problemas” que pretendia “solucionar”. Baseia-se,
além disso, num paradoxo fundamental: procura unificar a língua utilizando ao
mesmo tempo um critério, o da fonética, que torna automaticamente impossível a
referida unificação, dadas as variadíssimas cambiantes de pronúncia entre os
milhões de falantes da língua. Partindo de premissas erradas é impossível
chegar-se a conclusões correctas. Ou válidas.
O AO90 nega a real evolução da
língua portuguesa, fazendo de conta que esta não existiu. A verdade é que o
português de Portugal e o português do Brasil já se afastaram (sim,
irremediavelmente – admitamo-lo de uma vez por todas) e estas duas variantes já
não voltam a ficar iguais, nem que por acaso o AO90 conseguisse unificar a
ortografia (que não consegue). Não pode designar-se como “evolução”esta proposta
lamentável e inútil de ortografia “unificada”.
Em conclusão, o “acordo”
“ortográfico” de 1990 não é sério e não pode ser levado a sério. Suspenda-se de
imediato a sua aplicação.
(Contributo de H. Castro - Lisboa)
(Fonte: Fórum de Debate - Assembleia da República)
Sem comentários:
Enviar um comentário