O NÚMERO DO CONTRIBUINTE
Aqui há uns anos houve
uma discussão sobre o número único a propósito do cartão do cidadão. É uma
matéria pouco popular, tida como importando apenas aos intelectuais e aos
políticos, que as pessoas comuns vêem com muita indiferença. Se lhes parece mais
eficaz que cada um tenha um número único que sirva para o identificar num
bilhete de identidade, para reconhecer uma assinatura, na Segurança Social, no
fisco, numa ficha médica, num cartão de crédito ou de débito, qual é o problema?
Se isso lhe poupa tempo e papéis, qual é a desvantagem? Se isso permitir
perseguir um criminoso, que importa existir uma base de dados com o ADN das
pessoas? E se as tecnologias o permitirem, como permitem, qual o mal em podermos
vir a ter um chip como os cães, ou uma etiqueta electrónica como as crianças à
nascença, por que razão é que nós não podemos ser numerados por um qualquer
código de barras tatuado no braço?
A maioria das pessoas é indiferente ao abuso do
Estado nestas matérias se daí vier uma aparente maior eficácia e menor
burocracia. E os proponentes destas medidas, uns tecnocratas, outros fascinados
pelos tecnocratas, outros ainda gente mais perigosa e securitária cujo ideal de
sociedade perfeita é o 1984 de Orwell, todos manipulam a opinião contra
os antiquados defensores dos "direitos cívicos", que continuam a achar que não
se deve ter número único, chip, ou código de barras, em nome dessas
coisas tão de "velhos do Restelo" como sejam as liberdades e o direito do
indivíduo em ter uma reserva da sua vida íntima e privada, sem intromissão
indevida do Estado onde ele não deve estar.
Infelizmente, insisto, a indiferença cívica é o
pano de fundo de muitos abusos e a sociedade e o Estado que estamos a construir
são os ideais para uma sociedade totalitária. Se uma nova polícia política
aparecer - e para quem preza a liberdade esse risco existe sempre - não precisa
de fazer nenhuma lei nova, basta usar os recursos já disponíveis para obter toda
a informação sobre um cidadão que queira perseguir.
A promessa que nos é feita é de que os dados
"não são cruzados". Mas esta afirmação não só não é verdadeira como não garante
nada. Não impede um serviço de informações que queira abusar, de obter
cumplicidades e "cruzar" dados, não impede uma polícia de fazer o mesmo (o
episódio do acesso da PSP às filmagens não editadas sem ordem judicial é um
exemplo de práticas costumeiras que só são escrutinadas depois de um acidente de
percurso), não impede a utilização de software mais sofisticado para
fazer buscas na Internet, muito para além da informação já vasta que se pode
obter no Google. E se somarmos as câmaras de vigilância e outros meios cada vez
mais generalizados de controlo dos cidadãos, mais nos preocupamos com as
liberdades no mundo orwelliano em que já vivemos.
E quanto ao "cruzamento de dados" a partir de
um número único com informação indevida, tudo isso já existe e chama-se NIF,
número de identificação fiscal, ou mais prosaicamente, "número de contribuinte".
De há dez anos para cá, o Governo Sócrates e depois o Governo Passos Coelho
transformaram o fisco no mais parecido que existe com uma polícia global, e uma
polícia global é também política, e o número de contribuinte no verdadeiro
número único dos portugueses, cujo acesso permite todos os cruzamentos de dados
e uma violação sem limites da privacidade de cada cidadão. Se somarmos a isso o
facto de o fisco ser a única área da lei em que a presunção da inocência não
existe e o ónus da prova cai no cidadão, temos um retrato de um Estado de
excepção dentro de um Estado que se pretende de direito.
E não preciso de estar a recitar a litania do
combate à evasão fiscal, porque este caminho de abuso tem sido trilhado
exactamente porque o combate à evasão fiscal tem sido ineficaz onde deveria ser.
O furor do Estado volta-se contra as cabeleireiras, os mecânicos de automóveis e
as tabernas, mas ignora os esquecimentos de declaração de milhões de euros, que
só são declarados quando descobertos e não merecem uma palavra de condenação nem
do ministro das Finanças, nem do Banco de Portugal, nem de ninguém dos
indignados com a factura dos cafés. E é exactamente porque o combate à evasão
fiscal falha, ou porque a economia está morta, ou porque os Monte Brancos
são mais numerosos do que todas as montanhas dos Alpes, dos Andes, do Himalaia,
que se assiste a uma espécie de desespero fiscal que leva o Estado (os governos)
a entrar pela liberdade e individualidade dos cidadãos comuns de forma abusiva e
totalitária. Digo totalitária, mais do que autoritária, porque a tentação
utópica de "conhecer" e controlar a sociedade e os indivíduos através da
monotorização de todas as transacções económicas é de facto resultado de mente
como a do Big Brother.
Num computador do fisco está toda a nossa vida
já inventariada e cruzada através do número de contribuinte e dos poderes
discricionários da Autoridade Tributária. Se de manhã ao pequeno-almoço não
pedir factura do café, pode vir um fiscal e multar-me (não pode porque é ilegal,
impossível de facto, e o Governo anda a mentir-nos a dizer que já o fez quando
se devem contar pelos dedos da mão as contra-ordenações realizadas, se é que há
alguma à data do anúncio), e para lavrar o "auto" terá de dizer onde estou, o
que consumi sem factura e informar o Estado sobre se tomo chá, café ou
chocolate, doces ou salgados, etc. Depois passo por uma livraria e na factura
estão os livros que comprei e está o número de contribuinte. Hum! Este anda a
ler livros subversivos, ou quer saber coisas sobre a Tabela de Mendeleev (a
química é sempre perigosa), ou uma história sexualmente bizarra como a
Lolita, (diga aí ao assessor do senhor ministro que um boato de pedofilia
é sempre mortífero e o homem lê livros sobre isso), ou o Vox do Nicholson
Baker (uma história de sexo por telefone que o procurador Starr queria usar como
prova contra Clinton, pedindo à livraria que lhe confirmasse a compra do livro
por Monica Lewinsky, o que a livraria recusou e bem). Depois foi almoçar, e pelo
número de contribuinte verifico que almoça muitas vezes a dois, e dois é um
número suspeito. Coloque lá no mapa o sítio do pequeno-almoço, mais a livraria,
mais o restaurante, e as horas. E depois? A Via Verde cujo recibo tem o número
de contribuinte mostra que entrou na portagem X e saiu na portagem Y.
Interessante, o que é que ele foi fazer ao Entroncamento? E levantou dinheiro no
Multibanco. Muito ou pouco? Bastante. Veja lá as facturas que ele pagou no
Entroncamento. Aqui está, comprou uma mala de viagem. Então a factura? Não há,
comprou nuns chineses, mas foi visto com a mala na câmara de vigilância de um
banco. Anote aí para mandar uma inspecção do fisco e da ASAE aos chineses,
imagine o que seria se nós não tivéssemos as imagens do banco! O que é que ele
vai fazer com a mala? E por aí adiante.
A nossa indiferença colectiva face ao continuo
abuso do Estado, que nada melhor nos dias de hoje revela do que o fisco, vai
acabar por se pagar caro. Muitos tentaram fugir ao fisco? É verdade, muitos
inclusive nunca pagaram impostos e vivem numa economia paralela, mas a sanha
contra eles, que face ao fisco não tem direitos, nem defesa, nem advogados,
contrasta com a complacência afrontosa com a fraude fiscal com os poderosos. É
que também nisso, na perseguição aos pequenos, se revela o mundo totalitário de
1984 e do Triunfo dos Porcos, em que alguns são mais iguais do que
outros. E pelo caminho, para garantir que os pequenos sejam apanhados na malha,
pelo desespero de um fisco que quer sugar uma economia morta de recursos que ela
não tem, é que se usa o número de contribuinte como número único, cruzado nos
computadores das finanças, muito para além do que é necessário e equilibrado,
numa ameaça às liberdades de cada português.
(Por José Pacheco Pereira, In ABRUPTO - 23/02/2013) (Imagem retirada daqui) (Sublinhados deste blogue)
(Por José Pacheco Pereira, In ABRUPTO - 23/02/2013) (Imagem retirada daqui) (Sublinhados deste blogue)
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