Grândola e a democracia formal
Coelho e Gaspar são seres ocos de alma. Actuam como robots, insensíveis às pessoas que abalroam. Quando se espetam na realidade, ficam ali, obcecados, empurrando o que não se move, moendo carretos, como os bonecos de corda da minha infância. Só mudam quando os senhores do dinheiro os reprogramam. Trocados os chips moídos, voltam à sugagem solipsista para que foram preparados. A obra-prima de Relvas foi levá-los ao Governo. Imagino-o produzindo-a, ora de avental, no secretismo da organização, ora de iphone à boca, injectando no tutano da fibra óptica a baba com que foi tecendo a conveniente teia partidária. "Visto", cola-se-lhe à figura a falsidade e a falta de ética. “Ouvisto”, sobram as banalidades. Mas confrontá-lo com a “Grândola, Vila Morena” inquietou os defensores da democracia. Que democracia? A formal. A do “da” e do “de”, agora destrinçados pela fina porfia presidencial, em tempo certo, oito anos passados. Ao apreciarem os factos, esqueceram que há outra democracia: a que a alma imensa de Zeca Afonso cantou.
No Clube dos Pensadores, primeiro, no ISCTE depois, Relvas foi interpelado pela canção de Abril. No primeiro caso reagiu, cantando-a alarvemente. No segundo, foi, por uma vez, autêntico: fugiu, cobardemente. Quem disse que Relvas foi impedido de falar? Ao fim de dois minutos e 27 segundos de protesto, bateu em retirada. Na Assembleia da República, Passos ouviu e falou. Em Vila Nova de Gaia, o próprio Relvas ouviu e falou. No Porto, Paulo Macedo ouviu e falou. No ISCTE, Relvas ouviu e fugiu. Estes são os factos. O mesmo discurso que incensou a paciente resiliência da polícia, que guardava a Assembleia da República a 14 de Novembro de 2012, regressou agora, perene de hipocrisia. Então, justificou-se hora e meia de apedrejamento da polícia, por delinquentes comuns, com a tolerância democrática. Agora, dois minutos e 27 segundos de ruidoso mas pacífico protesto chegaram para decretar um inaceitável “atentado à liberdade de expressão”. Então, lavou-se uma carga policial bruta e desproporcionada. Agora, os moralistas do bloco central transformaram o algoz em mártir. Quem veio em socorro de Relvas talvez preferisse um país em coma induzido, que passasse pelas suas diatribes sem sobressalto cívico. Por isso criticaram os estudantes do ISCTE.
Entendamo-nos, sem paixão.
Naquela plateia estavam filhos de famílias endividadas e espoliadas por gente que, para ganhar as eleições, mentiu sem pudor, jurando publica e repetidamente que nunca faria o que, com frieza de arrepiar, está a fazer. Naquele palco estava uma figura grotesca, alma gémea e lídima representante do primeiro-mentiroso de um Governo que semeia desigualdade, fome e desemprego.
Naquela plateia estavam estudantes que pagam as mais altas propinas da Europa a um Estado que lhes reserva o desemprego e a emigração como futuro. Naquele palco estava um licenciado que não precisou de ser estudante.
Naquela plateia estavam estudantes que, uma vez na vida, tinham a hipótese de exercer publicamente a sua liberdade de expressão. Naquele palco estava o homem que tem os microfones que quer, sempre que quer, e que teve o poder de calar o jornalista Pedro Rosa Mendes, porque disse o que não lhe agradou, e o desplante de ameaçar a jornalista Maria José Oliveira, porque ia dizer o que não lhe convinha.
Naquela plateia estiveram os novos pobres, de raiva a crescer nos dentes. Daquele palco fugiu um novo-rico, de medo a crescer no rabo.
Esta foi a cena que Santos Silva e Assis, vivendo cá, leram mal. Esta foi a cena que a objectiva da vice-presidente da comissão Europeia, Viviane Reding, passando por cá, fixou assim: “Feliz é o país que protesta com uma canção”.
Francisco Assis era bebé em 1969, e Augusto Santos Silva saía da puberdade na mesma altura. Mas são homens cultos, que conhecem, pela história, o movimento académico iniciado em Coimbra, em 17 de Abril desse ano. As diferenças abissais entre a ditadura real daquele tempo e a democracia formal de agora, justificarão que sejam generosos para com o colega de partido, Alberto Martins, que interrompeu o Presidente da República, durante a inauguração do Edifício da Matemática. Um e outro não podem ignorar, também, que a dinâmica de toda a academia se sobrepôs, então, às vanguardas mais activas e organizadas. Pode, pois, ser essa consciência que justifica a severidade com que julgaram a atitude dos estudantes do ISCTE. É que ambos sabem que a alternância de primeiros-ministros, em 38 anos de democracia, resultou do querer de escassos 83 mil militantes do PS, 113 mil do PSD e 30 mil do CDS, num país com quase nove milhões de eleitores. Reverenciar a reverência a funções, que podem vir, ou voltar, a desempenhar, fruto desta lógica, afigurou-se-lhes prudente.
Naquela plateia estavam filhos de famílias endividadas e espoliadas por gente que, para ganhar as eleições, mentiu sem pudor, jurando publica e repetidamente que nunca faria o que, com frieza de arrepiar, está a fazer. Naquele palco estava uma figura grotesca, alma gémea e lídima representante do primeiro-mentiroso de um Governo que semeia desigualdade, fome e desemprego.
Naquela plateia estavam estudantes que pagam as mais altas propinas da Europa a um Estado que lhes reserva o desemprego e a emigração como futuro. Naquele palco estava um licenciado que não precisou de ser estudante.
Naquela plateia estavam estudantes que, uma vez na vida, tinham a hipótese de exercer publicamente a sua liberdade de expressão. Naquele palco estava o homem que tem os microfones que quer, sempre que quer, e que teve o poder de calar o jornalista Pedro Rosa Mendes, porque disse o que não lhe agradou, e o desplante de ameaçar a jornalista Maria José Oliveira, porque ia dizer o que não lhe convinha.
Naquela plateia estiveram os novos pobres, de raiva a crescer nos dentes. Daquele palco fugiu um novo-rico, de medo a crescer no rabo.
Esta foi a cena que Santos Silva e Assis, vivendo cá, leram mal. Esta foi a cena que a objectiva da vice-presidente da comissão Europeia, Viviane Reding, passando por cá, fixou assim: “Feliz é o país que protesta com uma canção”.
Francisco Assis era bebé em 1969, e Augusto Santos Silva saía da puberdade na mesma altura. Mas são homens cultos, que conhecem, pela história, o movimento académico iniciado em Coimbra, em 17 de Abril desse ano. As diferenças abissais entre a ditadura real daquele tempo e a democracia formal de agora, justificarão que sejam generosos para com o colega de partido, Alberto Martins, que interrompeu o Presidente da República, durante a inauguração do Edifício da Matemática. Um e outro não podem ignorar, também, que a dinâmica de toda a academia se sobrepôs, então, às vanguardas mais activas e organizadas. Pode, pois, ser essa consciência que justifica a severidade com que julgaram a atitude dos estudantes do ISCTE. É que ambos sabem que a alternância de primeiros-ministros, em 38 anos de democracia, resultou do querer de escassos 83 mil militantes do PS, 113 mil do PSD e 30 mil do CDS, num país com quase nove milhões de eleitores. Reverenciar a reverência a funções, que podem vir, ou voltar, a desempenhar, fruto desta lógica, afigurou-se-lhes prudente.
(Por Santana Castilho, In Público - 27/02/2013) (Sublinhados deste blogue)