"É indecente o que se está a fazer aos funcionários públicos e aos professores"
O que está em causa
para o Governo na greve dos professores é mostrar ao conjunto dos funcionários
públicos, e por extensão a todos os portugueses que ainda têm trabalho, que não
vale a pena resistir às medidas de corte de salários, aumentos de horários e
despedimentos colectivos, sem direitos nem justificações, a aplicar a esses
trabalhadores. É um conflito de poder, que nada tem a ver com a preocupação
pelos alunos ou as suas famílias.
Há mesmo em curso uma tentação de cópia do
thatcherismo, à portuguesa, numa altura em que uma parte do Governo pende para
uma espécie de gotterdammerung revanchista e vingativo, de que as medidas
ilegais como a recusa do pagamento do subsídio de férias pela lei em vigor são
um exemplo. Não é porque não tenha dinheiro, é porque quer mostrar que é o
Governo que decide as regras do jogo e não os tribunais e as leis. Qualquer
consideração pelas pessoas envolvidas, não conta.
O Governo sabe que a sua legitimidade é
contestada sem hesitações por muita gente, e pretende ultrapassar com um
exercício de autoridade essa enorme fragilidade. Por isso, a greve dos
professores é muito mais relevante do que o seu significado como conflito
profissional, e é também por isso que o Governo, aproveitando o deslaçamento que
tem acentuado na sociedade com o seu discurso de divisão, usa pais e alunos para
a combater. Não é líquido que não possa ter resultados, até porque os sindicatos
não têm conseguido ter um discurso límpido e claro, e os professores que se
mobilizaram quase a 100% contra Maria de Lurdes Rodrigues, por causa da
avaliação, estão hoje muito mais encostados à parede e enfraquecidos.
O medo dos despedimentos é muito perturbador no
actual contexto de crise social, em que quem perde o trabalho nunca mais o vai
recuperar. Por isso, a greve dos professores, como a greve dos funcionários
públicos, é pelo emprego, em primeiro lugar, em segundo lugar e em último lugar.
É também contra a imposição unilateral de condições de trabalho e horários no
limite do aceitável. Mas o emprego é hoje o bem mais precioso e mais ameaçado.
Aliás, o aumento do horário de trabalho é também uma medida para facilitar o
desemprego.
Os sindicatos são um instrumento vital de
resistência social em tempos como os de hoje, e é ridículo e masoquista ver
alguns professores a "esnobarem" dos sindicatos quando mais precisam deles. No
entanto, isto não pode fazer esconder que os sindicatos estão longe de estarem à
altura do momento que o mundo laboral está a atravessar. É aliás aqui que os
efeitos mais perniciosos da dependência partidária do movimento sindical
português mais se manifesta, quer para a CGTP, quer para a UGT.
Num momento em que existe uma ofensiva em
primeiro lugar contra os funcionários públicos e, depois, contra qualquer forma
de resistência organizada dos trabalhadores, ou seja, também contra os
sindicatos e os direitos laborais, substituir uma acção próxima dos mais
atingidos por uma tentativa de lhe dar cobertura com slogans políticos é
um erro que se paga caro.
Não adianta virem usar slogans, como
seja a "defesa da escola pública", apresentando-os como a principal razão de
luta dos professores. Em casa em que não há pão, ninguém se mobiliza por
abstracções, mobiliza-se pelo pão. É verdade que o Governo é contra a "escola
pública", mas o seu objectivo fundamental nestes dias é despedir funcionários
públicos, incluindo os professores, para garantir os cortes permanentes da
despesa pública a que se comprometeu, em grande parte porque, ao ter deprimido a
economia no limite do aceitável, não tem outro modo de controlar o défice. Se o
escolhe fazer nos mais fracos e dependentes da sua vontade, como sejam os
funcionários públicos, é relevante, mas até por isso é a balança de poder que
está em causa nas próximas greves.
A utilização de uma linguagem estereotipada
pode ser muito confortável do ponto de vista ideológico, mas funciona como
entrave quer à mobilização profissional, quer à mais que necessária mobilização
da sociedade. Não é pela "defesa da escola pública", nem por qualquer objectivo
assim definido programaticamente, que a greve pode ter sucesso, em particular
face à ofensiva governamental que conta com muito mais apoio na comunicação
social do que se pensa. É pela condição do trabalho, pelo emprego, que, no
actual contexto, são muito menos egoístas do que podem parecer. É, aliás, também
nesse terreno que os funcionários públicos e os professores podem e devem
"falar" com todos os outros trabalhadores do sector privado, porque aí os seus
objectivos são comuns.
O que parece que os sindicatos têm vergonha de
enunciar é o seu papel de defesa de um grupo profissional, como se os objectivos
laborais não fossem objectivos nobres de per si, ainda mais na actual tentativa
de criar uma sociedade "empreendedora", assente na força de poucos contra o
valor e a dignidade do trabalho de muitos. A incapacidade que tem a esquerda de
enunciar objectivos firmes no âmbito destes valores, substituindo-os por uma
retórica abstracta, acaba por resultar numa falsa politização que se torna num
instrumento espelhar do mesmo discurso de divisão que o Governo faz. Ainda estou
à espera que alguém me explique por que razão não se diz, preto no branco, sem
bullshit, que a greve é justificada pela simples motivo que nenhum grupo
profissional numa sociedade democrática, seja empregado de uma empresa, ou do
Estado, pode aceitar que se lhe torne o despedimento trivial, por decisões que
são de proximidade (os chefes imediatos), e que não têm que ser justificadas a
não ser por uma retórica vaga de "reestruturação", um outro nome para cortes
cegos e pela linha da fraqueza dos "cortados".
E também não se diz, sem bullshit, que
não é fácil manter a calma e a civilidade quando se tem que defrontar do lado
das negociações pessoas que mentem quanto for preciso, e que estão apenas a ver
se meia dúzia de mentiras ou ambiguidades servem para passar a tempestade e
voltar à acalmia que precisam para fazerem tudo aquilo que hoje dizem que não
vão fazer. Os mesmos que, nos últimos dois anos, tudo prometeram e nada
cumpriram e que ainda há poucos meses juravam em público que nada disto iria
acontecer. Ou seja, gente não fiável, de quem se pode esperar tudo e cujo
discurso nas suas ambiguidades deliberadas está a ser feito para que tudo seja
possível. Em Agosto ou em Setembro, passada a vaga de conflitualidade social,
vão ver como milhares de pessoas vão para a "requalificação", como o aumento dos
horários de trabalho vai servir para tornar excedentária muita gente e como,
sejam professores ou contínuos, todos vão estar no mesmo barco do olho da
rua.
Eu continuo a achar que a decência mobiliza
muito mais do que a "escola pública" e que tem a enorme vantagem de toda a gente
perceber quase de imediato o que é. E tem ainda a vantagem de ser fácil
explicar, e de ser fácil de compreender por toda a gente, que é indecente o que
se está a fazer aos funcionários públicos e aos professores. E assim socializar
o mesmo tipo de revolta que muitos dos actuais alvos do Governo sentem, porque
ela não é diferente da que tem muitos milhões de portugueses. Digo bem, milhões.
Não é coisa de somenos.
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